CID-11: tudo o que o RH precisa saber sobre a nova classificação internacional de doenças, que define o burnout como doença ocupacional
Prevista para entrar em vigor neste ano, a CID-11 foi adiada para 2027. Entretanto, as mudanças da classificação já impactam empresas e profissionais.
A implementação oficial da CID-11 no Brasil foi adiada para o ano de 2027, de acordo com uma nota emitida pelo Ministério da Saúde.
A mais nova revisão da Classificação Internacional de Doenças, publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) com códigos e descrições de mais de 50 mil condições, deveria entrar em vigor neste mês, conforme um acordo firmado entre o Ministério da Saúde com a Organização Panamericana de Saúde. Entretanto, segundo informações divulgadas pelo Ministério, o processo de transição foi prolongado para garantir seu sucesso.
Contudo, o adiamento não deve afetar a utilização das informações contidas na CID-11, acredita o médico João Silvestre, diretor-científico da Associação Paulista de Medicina do Trabalho (APMT).
“Ainda que a migração completa dos dados para o SUS tenha ficado para 2027, como a versão em inglês já estava disponível no mundo todo há alguns anos, as pessoas já tinham conhecimento da CID-11 e do seu conteúdo no Brasil. Inclusive, já estavam utilizando a classificação”, afirma.
Adotada na Assembleia Mundial de Saúde em 2019, a 11ª classificação internacional passou a ser utilizada por estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2022. Quase dois anos depois, em fevereiro de 2024, a OMS disponibilizou uma versão em português da CID-11.
Apesar de ainda não ter sido implementada oficialmente nos sistemas públicos de saúde, suas informações vêm sendo empregadas por médicos de todo o país para realizar diagnósticos em conformidade com os padrões da OMS, além de ter auxiliado especialistas em legislação trabalhista a caracterizar situações laborais insalubres.
Isso acontece porque dos principais diferenciais da CID-11 foi trazer, pela primeira vez, o burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, na relação de doenças do trabalho. Responsabilizando, desta forma, o empregador (e não o empregado) pelos sintomas que caracterizam a síndrome.
“Essa mudança é crucial porque redireciona o foco para as condições de trabalho que contribuem para o desenvolvimento de burnout, como cargas excessivas, falta de apoio organizacional, e ausência de controle sobre demandas, em vez de estigmatizar o indivíduo que sofre com a enfermidade”, observa a psicóloga Tatiana Pimenta, CEO da plataforma de terapia online Vittude.
O que é a CID-11?
A CID-11 é a 11ª (e mais recente) reformulação da Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS e chegou para substituir a CID-10 (lançada em 1989). Trata-se do manual completo de todas as enfermidades já categorizadas pela organização internacional, descritas por sintomas e classificadas por códigos padronizados.
A versão atual começou a ser pensada em 2018, foi anunciada em 2019 e adotada internacionalmente em 2022. Segundo a psiquiatra Thalita Novaes, do Instituto de Psicologia e Controle do Stress (IPCS), a CID existe para uniformizar os termos médicos no mundo todo.
“Quando conseguimos alinhar as informações que tenho no Brasil com o que um colega médico viu na Europa e outro, na Ásia, é possível entender como as doenças incidem ao redor do mundo, ter uma melhor padronização e trabalhar de uma forma mais uniforme”, diz a médica.
“É um instrumento que permite, por exemplo, comparações a respeito de morbidade e mortalidade em diferentes países”, completa João Silvestre, da APMT.
O que a CID-11 fala sobre o burnout?
Por definir o burnout com base em critérios bastantes específicos, a CID-11 fornece embasamento científico para que o tema seja abordado de maneira consistente, orientando tanto políticas públicas quanto iniciativas no ambiente de trabalho.
A descrição da síndrome na ferramenta inclui três dimensões: a exaustão, a despersonalização e a eficácia reduzida. “A pessoa tem a sensação de estar sempre esgotada, fatigada, e passa a ter sentimentos negativos sobre o trabalho, além de um distanciamento emocional. Começa a não se importar com nada e a fazer só o necessário. Além de ser menos produtiva em um trabalho que antes fazia muito bem”, define Thalita.
Normalmente, as pessoas que apresentam burnout são conhecidas por uma performance acima da média, mas que, em dado momento, começam a ficar bastante desanimadas. De acordo com a médica, é comum que o quadro esteja relacionado a uma mudança de gestão ou cultura da empresa.
“Há sempre algum fator, na organização, que casa com as alterações. É comum o profissional achar que está em crise ou que não gosta mais do trabalho. Alguns pensam em sair da empresa ou em mudar de área, quando, na realidade, estão enfrentando um problema de saúde, um esgotamento”, explica Thalita.
Em função da exaustão, o paciente começa a sentir mais cansaço e sonolência, além de deixar de fazer outras atividades, impactando a vida pessoal.
“Na dimensão do distanciamento, esse funcionário vai ficar mais irritado e apático, como se ficasse anestesiado, no piloto automático. Na terceira dimensão, a da eficácia reduzida, começa a ter um sentimento de menos valia, de que não dá conta e pode desenvolver um sentimento de culpa, porque já não consegue mais fazer o trabalho”, avalia a psiquiatra.
Os sintomas fisiológicos podem ser vários, como alteração de apetite e de sono. Isso porque o burnout é um gatilho para o aumento do cortisol, o chamado hormônio do estresse, o que torna as pessoas também mais propensas a desenvolver problemas de saúde como pressão alta, doenças cardiovasculares, alergias de pele, entre outras condições.
Embora sua classificação seja recente, João lembra que o esgotamento profissional já era um problema de saúde conhecido muito antes do lançamento da CID-11. “Além de estar na lista brasileira de doenças relacionadas ao trabalho desde 1999, pelo menos desde os anos 1970 era um problema de saúde reconhecido internacionalmente.”
Mas ao incluir o burnout entre as enfermidades ocupacionais e descrevê-lo detalhadamente, determinando o trabalho como a sua causa, a nova classificação da OMS não apenas facilita o seu diagnóstico e responsabiliza as empresas, como também livra o trabalhador de um estigma incômodo.
“Quando se pensa em saúde mental, essa mudança da CID-11 é bastante marcante, porque o esgotamento aparecia na CID-10 de uma forma mais genérica, em uma sessão de transtornos mentais. Também não havia nome. O peso antes recaía sobre o indivíduo, que não conseguia lidar ou “dar conta” dos problemas e adoecia”, explica Thalita.
“Agora, temos um respaldo maior, inclusive burocraticamente, para falar que não é nada disso, pois a doença é decorrente do estresse crônico no ambiente de trabalho. Quando a coisa ganha esse peso, de estar escrita em um manual que o mundo inteiro usa, devagar a sociedade vai conseguindo interiorizar”, explica a psiquiatra do IPCS.
Em resumo, a partir de 2022, com o lançamento da última versão da CID, ficou mais fácil comprovar a responsabilidade do empregador em casos de burnout, afirmam os médicos entrevistados. Para tanto, basta comprovar o nexo entre o adoecimento do funcionário com burnout e seu trabalho para que a empresa seja acionada por não tê-lo protegido adequadamente.
Impacto da CID-11 no RH e nas empresas
O tema da campanha Janeiro Branco deste ano, “O que fazer para a saúde mental agora e sempre?”, lembra a importância do cuidado constante com um aspecto frequentemente negligenciado, mas que vem ganhando protagonismo na agenda do RH: zelar pelas condições de trabalho das pessoas.
À frente da Vittude, plataforma digital que conecta psicoterapeutas a potenciais clientes, Tatiana acredita que o impacto da classificação da OMS sobre as organizações e, principalmente, os departamentos de RH, é bastante significativo.
“Por descrever com mais precisão os diagnósticos de condições relacionadas ao trabalho, a CID-11 amplia a responsabilidade das empresas em relação à saúde mental e ao bem-estar de seus colaboradores. Reforçando, assim, a necessidade de as organizações sistematizarem ações preventivas e estratégicas sobre o tema”, avalia.
As mudanças na nova classificação, relacionadas sobretudo ao burnout, também podem significar implicações financeiras para as empresas, aponta a psicóloga.
“Nos casos em que o INSS valida a síndrome de burnout como motivo de afastamento e concede o benefício B-91 [doença ocupacional], há impacto direto na alíquota do Risco de Acidente de Trabalho [RAT], que é ajustada pelo Fator Acidentário de Prevenção [FAP]”, lembra Tatiana.
Um FAP elevado aumenta o custo do risco de acidente de trabalho, o que resulta em uma maior tributação sobre a folha de pagamento, esclarece a fundadora da Vittude. “Isso reforça a importância de estratégias preventivas no ambiente corporativo, pois investir em saúde mental protege os colaboradores, reduz riscos financeiros e custos tributários a longo prazo.”
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Assim como a inclusão do burnout como um fenômeno ocupacional, Tatiana acredita que o maior detalhamento de questões de saúde psiquiátricas, como transtornos de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, fornecido pela CID-11, ampliam o entendimento de como o trabalho pode influenciar a saúde mental das pessoas.
“Isso desafia as empresas a reconhecerem que a saúde mental não é apenas uma questão individual, mas um reflexo direto do ambiente organizacional e das práticas de gestão”, ressalta a CEO da Vittude.
A psicóloga acredita que, especificamente no mundo corporativo, a consolidação da nova classificação da OMS reforça a necessidade de integrar a saúde mental à estratégia de negócios.
“As empresas que ignoram esses aspectos podem enfrentar não apenas desafios relacionados ao bem-estar dos colaboradores, mas também consequências financeiras, como aumento de absenteísmo, turnover e custos tributários devido a afastamentos associados a doenças ocupacionais”, diz Tatiana.
“Dessa forma, a CID-11 marca um avanço ao alinhar o debate global sobre saúde mental às práticas corporativas, incentivando uma abordagem mais humanizada e estratégica no cuidado com as pessoas”, completa
E, para promover a saúde mental dos funcionários, os profissionais de RH devem trabalhar em diversas frentes, a começar pela revisão de políticas e práticas adotadas por todos os setores da sua empresa, orienta Tatiana.
Segundo a psicóloga, além de estabelecer cargas de trabalho mais equilibradas, é fundamental sistematizar programas de suporte psicológico e de capacitação de gestores. “Para que possam identificar sinais de exaustão nos integrantes de suas equipes com maior facilidade e que, com isso, seja possível lidar com a situação de maneira assertiva”, afirma.
Principais mudanças da CID-11
A grande novidade é a inclusão da síndrome de esgotamento profissional mais conhecida como burnout, caracterizada como um fenômeno laboral e descrita em suas diferentes dimensões. Além disso, a classificação traz informações mais detalhadas, que permitem aos profissionais de saúde chegar a diagnósticos mais precisos. Completamente digital, a CID-11 traz também um novo formato de códigos.
No que diz respeito às enfermidades, a CID-11 agrupou os diferentes transtornos do espectro autista; classificou a transexualidade (colocando-a na categoria de saúde sexual); e acrescentou distúrbio relacionado ao uso excessivo de jogos eletrônicos.
Exemplos de códigos da CID-11
- QD85 - Síndrome de esgotamento profissional (burnout)
- I11 - Doença cardíaca hipertensiva
- 6B00 - Transtorno de ansiedade generalizada
- 6C51 - Distúrbio relacionado ao uso excessivo de jogos eletrônicos
- RA01 - Covid-19
A90 - Dengue - B182 - Hepatite C viral crônica
- R10 - Dor abdominal e pélvica
- C50 - Neoplasia maligna de mama
- F51 - Transtornos não-orgânicos do sono devidos a fatores emocionais
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Repórter da Unicamp, formada na USP. Tem vasta experiência em produção de conteúdo para mídias digital e impressa, e assessoria de imprensa. Passou por Grupo Folha, Record e Microsoft.