Nova lei da saúde mental: saiba tudo sobre a legislação que certifica as empresas promotoras do bem-estar emocional
Dos aspectos jurídicos ao impacto para o RH, entenda o que a nova legislação traz de avanços em relação à saúde mental dentro das empresas.
Desde a explosão de transtornos mentais durante a pandemia, o tema da saúde mental vem ganhando cada vez mais espaço dentro e fora das empresas. E isso não acontece à toa. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a depressão e a ansiedade já afetam 1 bilhão de pessoas no mundo, o que gera um prejuízo de 1 trilhão de dólares à economia mundial.
Outro levantamento, desta vez da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), revela que o Brasil é o país mais atingido pela depressão na América Latina, com 5,8% da população afetada e 9,3% sofrendo com a ansiedade.
Todo esse cenário tem impulsionado também mudanças em relação à legislação, com a criação de diretrizes e regras mais claras sobre a relação entre a promoção do bem-estar emocional e um ambiente de trabalho saudável. A primeira delas aconteceu em 2022, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) classificou o burnout como doença ocupacional.
Aqui no Brasil, a primeira ação neste sentido aconteceu no final do ano de 2023, quando o Ministério da Saúde atualizou a lista de doenças relacionadas ao trabalho e incluiu o burnout, além da ansiedade e depressão, como patologias que podem ser decorrentes do estresse excessivo vivido no ambiente profissional.
Qual a nova Lei da saúde mental?
É nesse contexto que, no final de março deste ano, o Governo Federal sancionou a Lei nº 14.831/2024, também conhecida como a “nova lei da saúde mental”. Em linhas gerais, ela passará a reconhecer formalmente companhias que promovem a saúde mental de seus colaboradores com o Certificado da Empresa Promotora da Saúde Mental.
Mas a pergunta que fica é: na prática, qual o significado real da nova lei para empresas e colaboradores? Como ela vai colaborar para a melhoria da saúde mental dos trabalhadores? E como evitar o "mental health washing", quando empresas se apropriam do discurso sobre saúde mental, transformando-o em marketing, sem ter de fato práticas coerentes com o que dizem pregar?
Para entender todos os aspectos da nova legislação e como ela pode ajudar empresas e profissionais, o blog da Flash conversou com advogados e especialistas em saúde mental. Confira, a seguir, tudo o que o RH precisa saber sobre a nova lei da saúde mental.
O que dispõe a Lei nº 14.831/2024 também conhecida como “nova lei de saúde mental”?
Sancionada em 27 de março de 2024, a lei institui o Certificado de Empresa Promotora da Saúde Mental e detalha as ações necessárias para a obtenção da certificação, que será concedida pelo Governo Federal.
A advogada Virginia Todeschini, especialista em direito e relações do trabalho e sócia do escritório Kauffman Advogados, destaca o fato de que a nova lei não trata da saúde mental do trabalhador especificamente, mas olha para as práticas das empresas com relação ao tema.
O certificado terá validade de dois anos. Após esse período, a companhia deverá passar por nova avaliação para renová-lo. “Durante esse prazo, a empresa também poderá ter o certificado revogado, caso descumpra as diretrizes para sua obtenção", explica a advogada.
Como vai funcionar a nova lei da saúde mental na prática?
Embora já esteja em vigor, a lei ainda precisa de regulamentação, já que a concessão do certificado será realizada por uma comissão nomeada pelo governo, explica Virginia.
Segundo a advogada, o grupo será o responsável por aferir a conformidade das práticas desenvolvidas pelas empresas para a promoção da saúde mental de seus trabalhadores de acordo com as diretrizes previstas na lei.
“Essa comissão será criada nos termos de um regulamento, ainda a ser emitido. Além disso, esse regulamento deverá prever os procedimentos para concessão, revisão e renovação do certificado. Portanto, apesar de estar em vigor, a lei não tem aplicabilidade imediata.”
A advogada ainda destaca que não foram criados benefícios financeiros para as empresas obterem esse certificado, como descontos fiscais ou de créditos e que o benefício, por ora, é puramente reputacional.
Segundo a advogada, a quantidade de critérios a serem preenchidos para obtenção do certificado é extensa e complexa. Fora isso, talvez seja necessário a consulta a dados que, atualmente são sigilosos, como prontuários médicos dos colaboradores e denúncias e investigações promovidas pelo setor de compliance das empresas.
“Será necessária muita transparência das empresas perante o governo, o que pode dificultar e, até mesmo, desencorajar a sujeição a essa aprovação. Ou seja, a viabilidade, de fato, dessa certificação, só poderá ser aferida após a regulamentação”, diz a advogada.
Como obter o certificado empresa promotora da saúde mental?
Os critérios estão previstos no art. 3º da lei e preveem que a empresa interessada em obter o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental deve desenvolver ações e políticas fundamentadas nas seguintes diretrizes:
I – Promoção da saúde mental:
- a) implementação de programas de promoção da saúde mental no ambiente de trabalho;
- b) oferta de acesso a recursos de apoio psicológico e psiquiátrico para seus trabalhadores;
- c) promoção da conscientização sobre a importância da saúde mental por meio da realização de campanhas e de treinamentos;
- d) promoção da conscientização direcionada à saúde mental da mulher;
- e) capacitação de lideranças;
- f) realização de treinamentos específicos que abordem temas de saúde mental de maior interesse dos trabalhadores;
- g) combate à discriminação e ao assédio em todas as suas formas;
- h) avaliação e acompanhamento regular das ações implementadas e seus ajustes;
II – Bem-estar dos trabalhadores:
- a) promoção de ambiente de trabalho seguro e saudável;
- b) incentivo ao equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional;
- c) incentivo à prática de atividades físicas e de lazer;
- d) incentivo à alimentação saudável;
- e) incentivo à interação saudável no ambiente de trabalho;
- f) incentivo à comunicação integrativa;
III – Transparência e prestação de contas:
- a) divulgação regular das ações e das políticas relacionadas à promoção da saúde mental e do bem-estar de seus trabalhadores nos meios de comunicação utilizados pela empresa;
- b) manutenção de canal para recebimento de sugestões e de avaliações;
- c) promoção do desenvolvimento de metas e análises periódicas dos resultados relacionados à implementação das ações de saúde mental.
Leia também: Como evitar o esgotamento emocional no trabalho
Nova “lei da saúde mental” amplia a discussão sobre o tema
Para a psicóloga Mariana Bento, a lei pode ser considerada um avanço porque reforça a dimensão dos problemas mentais dentro do mundo corporativo.
“Temos altos índices de afastamentos nas empresas pelos CID F, que são os transtornos comportamentais. E, segundo a OMS, 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente por causa da depressão e da ansiedade. Então, podemos entender que, sim, temos um problema que precisa ser discutido”, afirma.
A psicóloga Lisiane Touguinha, especialista em carreira e saúde mental, também vê com bons olhos a ampliação da discussão sobre o tema.
“Atuei mais de 25 anos no ambiente corporativo, em empresas nacionais e multinacionais, como psicóloga e na gestão de RH. Vejo leis como esta como um alerta, um ‘parar para olhar’ como estão essas relações e a gestão de trabalho, de tempo e de vida e carreira”, avalia.
Reforça o coro a psicóloga Mariana afirma que a sanção da lei é um estímulo para as empresas investirem nessa área. "Em um cenário onde os índices de ansiedade, depressão e burnout estão em ascensão, é crucial priorizarmos o bem-estar dos colaboradores. Isso tem um impacto direto na produtividade das empresas", opina.
A nova lei de saúde mental e o "mental health washing"
Assim que a lei foi sancionada muitos críticos apontaram para o fato de que seria necessário estabelecer com mais clareza como cada critério usado para conceder o certificado seria avaliado.
Isso porque haveria um risco de a legislação abrir caminho para um "mental health washing". O termo deriva do conceito de “greenwashing”, usado para definir empresas que se vendem como sustentáveis mas que não possuem, de fato, práticas alinhadas a esse discurso.
No caso da lei da saúde mental, o risco é as empresas assumirem essa posição de preocupação em relação à saúde mental dos colaboradores, mas não ter práticas e resultados sólidos que assegurem isso no dia a dia.
“Este risco sempre existirá. Por isso é importante o trabalhador ter consciência de suas ações, clareza de seus objetivos e prioridades. Algo inalcançável está sendo solicitado? Tenha uma conversa de alinhamento. Algo não tem coerência com o que está disseminado na cultura da empresa? Questione, pergunte”, aponta Lisiane Touguinha.
Mas afinal, o que é uma empresa promotora da saúde mental?
Na avaliação de Lisiane, são aquelas empresas que de fato promovem a saúde mental no ambiente de trabalho, alinhando o discurso com a ação. Não é um processo simples, mas existem algumas premissas básicas que devem ser respeitadas. A seguir, o que ela julga imprescindível:
- Ser uma empresa que verdadeiramente tem espaço de escuta e garante segurança psicológica ao colaborador, em um ambiente onde as pessoas se sintam confiantes em expor ideias e questionar;
- Criar um ambiente de trabalho onde os colaboradores se sintam valorizados em todas as suas habilidades e diferenças, que percebam que há apoio mútuo, que podem errar sem serem punidas ou severamente julgadas;
- Dar espaço para que as pessoas possam expor problemas como forma de ter uma resolução coletiva, que sintam-se tranquilas em assumir riscos e se sintam num ambiente em que possam pedir ajuda para a própria equipe e para seu líder sem receio de sofrer alguma punição ou julgamento.
A criação de uma cultura que compreenda esses fatores perpassa, invariavelmente, pelo treinamento e capacitação de lideranças. "Claro, é preciso ter ações de conscientização sobre saúde mental para todos os colaboradores. Mas, especialmente os líderes precisam ser preparados e conscientizados em relação à saúde mental”, afirma a psicóloga Mariana.
Além disso, o papel dos benefícios, seja por meio de programas de saúde mental, subsídios para psicoterapia ou mesmo psiquiatras dentro das organizações, são outros pontos cruciais para a promoção do bem-estar emocional dos colaboradores. “Feedbacks estruturados, acesso às políticas da organização com transparência são outros fatores importantes”, complementa Mariana.
O que a lei fala sobre saúde mental? Conheça outras legislações relacionadas ao tema
- Lei 9.867/1999: dispõe sobre a criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais, visando a integração social dos cidadãos, incluindo aquelas com transtornos mentais, através do trabalho;
- Lei 10.216/2011: Conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, é a legislação mais importante relacionada à saúde mental no país. Ela direciona a assistência em saúde mental para serviços comunitários em vez de hospitais psiquiátricos, promove a desinstitucionalização e garante os direitos das pessoas com transtornos mentais, incluindo o direito ao tratamento em um ambiente humanizado e o menos restritivo possível.
- Lei nº 13.819/2019: Esta lei institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio. Ela é focada em ações preventivas e também na garantia de atendimento e tratamento adequado para pessoas em risco.
- Portaria 336/2022: reconheceu e ampliou a atuação dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) no atendimento público em saúde mental,
- NR 33 - Segurança e Saúde nos trabalho em espaços confinados: subitem 33.5.19.1 da Norma Regulamentadora trata sobre a avaliação da aptidão física e mental dos trabalhadores designados para essas atividades, considerando os fatores de riscos psicossociais;
- NR 17 – Ergonomia: visa estabelecer as diretrizes e os requisitos que permitam a adaptação das condições de trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores, de modo a proporcionar conforto, segurança, saúde e desempenho eficiente no trabalho.
Jornalista e mãe do Martin. Além de colaborar com a Flash, é assessora de imprensa na área de música e escreve sobre cultura em veículos de imprensa.