‘Trabalho está tomando proporções inimagináveis e invadindo outras dimensões da vida’, diz Shenia Karlsson, psicóloga que trabalha com lideranças femininas
Ela propõe estratégias para apoiar mulheres líderes e promover ambientes corporativos mais saudáveis.

Foi ao longo da trajetória iniciada há quase 15 anos como psicóloga clínica no Brasil e em Portugal que Shenia Karlsson percebeu que muitas das mulheres que atendia, embora bem-sucedidas em suas trajetórias profissionais, traziam relatos semelhantes sobre os desafios e dificuldades enfrentados no trabalho.
A tentativa de equilibrar alta performance, cumprimento de metas, busca por resultados e a preservação da saúde mental, emocional e das boas relações no ambiente de trabalho causa um intenso desgaste nestas mulheres, segundo Karlsson.
Frequentemente convidada a visitar empresas para dar palestras, liderar grupos de acolhimento ou fazer mediação de conflitos - trabalho que hoje desenvolve também no reality show “Ilhados com a Sogra” (Netflix), a psicóloga entendeu que poderia expandir o impacto de sua atuação.
Pensando nisso, Shenia criou um método próprio de trabalho com mulheres líderes em empresas, com o objetivo de ajudá-las a lidar com os desafios que suas posições lhes impõem, dentro e fora das empresas.
“Meu foco é desenvolver soluções mais ousadas, com o objetivo de propor estratégias que vão além da superficialidade, com acompanhamentos mais sistemáticos e elaborados. Minha missão é oferecer ferramentas que promovam relações laborais mais saudáveis e que assegurem a verdadeira segurança psicológica, e principalmente erradicar microviolências e hierarquias nocivas nas equipes”, explica.
Para ela, o trabalho está tomando proporções muito maiores, prejudicando as outras dimensões das vidas destas mulheres, que, historicamente, já têm uma carga da dupla jornada. "No final ficamos com uma conta bem cara para pagar", afirma.
A especialista em diversidade, empoderamento executivo, gênero, negritudes e racialidades, falou à Flash sobre a relação entre mulheres, sobretudo as negras, e o mercado de trabalho. Confira abaixo trechos da conversa:
Pode aprofundar um pouco essa metodologia que você criou para seu trabalho com lideranças em empresas?
Shenia Karlsson: Essa abordagem combina o aspecto técnico da mediação com a dimensão emocional do acolhimento. Ela capacita líderes a se tornarem agentes de mudança dentro de suas equipes visando ações concretas e, principalmente, a melhoria das relações interpessoais.
O foco está em fomentar laços de confiança, identidade coletiva e alinhamento em termos de visão política e propósito. Além disso, a equipe terá a chance de criar um ambiente seguro onde as emoções possam ser expressas, com o suporte de uma profissional experiente. Os pilares são:
- Mediação de conflitos: com ênfase nas dinâmicas de poder e comunicação.
- Grupo de confiança: apoio emocional coletivo e foco em relações confiáveis.
- Desenvolvimento emocional: autoconhecimento do estilo próprio de gestão, autorreconhecimento e autorresponsabilidade.
De modo geral, as queixas que essas mulheres trazem são mais externas, como machismo no ambiente de trabalho ou do parceiro em casa, ou por conflitos internos, como a culpa por talvez passar menos tempo com os filhos do que acha que deveria?
Estudos recentes, como o da Harvard Business Review, de 2023, revelam que 60% dos executivos trabalham mais de 60 horas por semana, o que contribui para o esgotamento crônico, sendo que as mulheres podem ser ainda mais impactadas, especialmente aquelas que lidam com a dupla jornada de trabalho e responsabilidades familiares.
Como muitas de nós cumprem dupla jornada, ser bem-sucedida no trabalho e ter uma família bem-sucedida tem uma pressão maior. Mulheres lidam com conflitos significativos entre a vida pessoal e profissional, apresentando dificuldades em estabelecer limites, especialmente em modelos híbridos ou remotos, o que eleva o estresse familiar e contribui para o aumento das taxas de divórcio.
A culpa é quase um sobrenome de todas nós. E, infelizmente, nós também temos que considerar que o trabalho está tomando proporções inimagináveis e invadindo as outras dimensões da vida, uma centralidade que prejudica as outras dimensões. Por conta de as mulheres já terem essa carga histórica da dupla jornada, temos prejuízos concretos, simbólicos e subjetivos nessa equação. No final ficamos com uma conta bem cara para pagar.
Pensando no âmbito de conflitos dentro das empresas, você acha que mesmo em 2025 ainda estamos “lendo” a mulher assertiva como grossa e histérica e o homem com a mesma postura como um líder firme?
Eu acho que sim, mas a discussão está posta. As mulheres estão mais instrumentalizadas, têm mais conhecimento para falar sobre estas questões de igual para igual. Há uma discussão da qual está cada vez mais difícil de se fugir.
As mulheres estão participando da vida laboral, são gestoras, contribuem para a evolução e para o desenvolvimento das empresas. Pesquisas mostram que as companhias que investem na presença feminina têm uma porcentagem maior de desenvolvimento, de lucro etc. A gente caminhou pouco, mas caminhou.
Entrando um pouco em questões que estão no seu campo de estudo como a síndrome da impostora, a competição feminina e a inveja, como elas aparecem hoje no ambiente de trabalho e como lidar com elas?
No mundo corporativo, político e empreendedor, líderes enfrentam desafios únicos, especialmente mulheres – desde o famoso "teto de vidro" até o fenômeno da impostora que mina sua confiança.
Quanto mais alto o cargo, menor é o espaço para compartilhar vulnerabilidades, o que contribui para a solidão na liderança, conforme evidenciado por um estudo realizado pela Universidade de Stanford em 2023. Dados mostram que só 8% dos CEOs das 500 maiores empresas do mundo são mulheres (Fortune 500, 2024); elas recebem 23% menos que homens no mesmo cargo (IBGE, 2023); e 67% das executivas sofrem com a Síndrome da Impostora (Harvard Business Review).
Ou seja, duvidam do próprio sucesso. Muitos líderes hesitam em buscar ajuda por receio de serem vistos como "fracos", especialmente as mulheres, que enfrentam estigmas associados ao gênero, sendo frequentemente percebidas como menos capazes e emocionalmente frágeis.
E a inveja?
Como ainda estamos na conquista dos espaços, a sensação é de escassez, o que causa uma profunda desconfiança e fomenta a competição entre nós. E a gente não pode esquecer que está sob uma lógica capitalista, individualista, egocêntrica, em que está todo mundo tentando se manter no mercado de trabalho. Um dos resultados é a inveja.
Acho muito natural, inclusive, que se humanize isso. Temos que diferenciar as invejas, também. Quando ela é doentia, é sobre alguém. Mas estamos falando de um sistema que incentiva esse tipo de interação, isso nos impede de pensar em relações mais colaborativas e menos autocentradas, individualistas.
A rede de apoio é um sistema de proteção muito poderoso, mas ainda estamos falhando em fortalecer essas redes. Sozinhas, a gente não vai muito longe. Muitas mulheres de sucesso têm várias pessoas por trás, dando suporte. Crescemos no coletivo. Por isso esse trabalho de supervisão emocional trata realmente de pensar de forma crítica: como instalar um sentido coletivo profundo para podermos avançar.
Pode-se dizer que há uma distorção, em que o machismo faz essa inveja ser tratada como uma falha de caráter e competição quando, na verdade, é estrutural?
Um aspecto muito pertinente é que falamos de machismo e patriarcado, mas nunca nos vemos como figuras que oprimem outras mulheres, que há uma hierarquização entre nós. Nós podemos ser muito violentas em nossas relações laborais e temos que estar atentas a isso. Então essa metodologia também cuida dessa parte, de se rever o tempo inteiro.
A representatividade feminina é nova. É muito novo olhar uma mulher e reconhecê-la em suas qualificações, em suas potencialidades, estabelecer essa mulher como um referencial positivo. Estamos em construção ainda e temos sentimentos muito conflituosos: em que medida essa mulher ameaça aspectos do meu feminino?
Estamos falando de desconstruir coisas, e construir novas. Isso não acontece de uma hora para outra, porque senão fica uma coisa muito individualizada, como um defeito de caráter, e vem a síndrome da impostora, a procrastinação, a autossabotagem. Todos esses sentimentos que vão nos acometendo e nos impedindo de avançar. Não individualmente, mas coletivamente.
Se mulheres em posições de liderança já são minoria, quando pensamos em mulheres negras, estamos acessando um outro lugar ainda mais raro. Pode falar um pouco sobre isso, e como impacta este trabalho que você faz?
Só tratando o gênero, coletivamente, nós mulheres já somos vistas através de todos esses estigmas. E aí vamos tratar de um grupo social de mulheres que têm um atravessamento histórico muito problemático. Não é só no Brasil, eu atendo mulheres do mundo inteiro, e também mulheres negras. Brasileiras brancas, por exemplo, que vão para o mercado de trabalho europeu ou americano e são racializadas. Não falamos sobre isso, mas é um fenômeno mundial.
Estamos falando de um corpo que foi visto, historicamente, como não inteligente, não capaz, subalterno, desumanizado, inapropriado, ameaçador. Olha quantas coisas uma mulher negra tem que combater para fazer uma mobilidade profissional, social, e se manter no mercado. Estamos falando de avanço, mas muito pouco se discute sobre se manter. Por exemplo, uma coisa que acontece com muita frequência: eu atendo mulheres geniais, extremamente qualificadas. Elas sofrem perseguição, retaliação, boicotes. Não é uma coisa rara eu abrir uma uma sessão de psicoterapia e elas iniciarem falando: "Fui demitida". Sem motivo aparente, depois de terem recebido em uma reunião de feedback o aviso de terem alcançado todas as metas.
No entanto, em qualquer crise na empresa, somos as primeiras a serem dispensadas. Eu atendo mulheres negras que têm muita dificuldade de terem promoções em seus ambientes de trabalho. Às vezes, assistem promoções de pessoas que chegam depois, e o critério geralmente não é a qualificação. Há realmente uma dificuldade de reconhecer aquele corpo negro como capaz de receber confiança o suficiente para dar conta de um departamento. Já há pesquisas que demonstram que pessoas negras estão mais propensas a ter burnout, por exemplo.
Leia mais em Blog da Flash:

Jornalista e mãe do Martin. Além de colaborar com a Flash, é assessora de imprensa na área de música e escreve sobre cultura em veículos de imprensa.