Um em cada cinco brasileiros trabalha sob sofrimento psicológico: como RHs e líderes podem agir?
Veja como criar práticas estruturadas para garantir que colaboradores tenham uma boa saúde mental.

Ansiedade, depressão e estresse são companhias constantes para milhões de trabalhadores brasileiros. Segundo levantamento da YouGov, divulgado recentemente pelo Valor Econômico, 21% das pessoas que estão atuando profissionalmente enfrentam transtornos mentais. Os dados ainda mostram que mulheres entre 25 e 34 anos (27,9%) e homens de 35 a 44 anos (27,4%) são os grupos mais impactados.
Esses números acendem um alerta: o sofrimento psicológico se instalou nos ambientes corporativos, afetando diretamente os resultados das empresas e a vida das pessoas. Em um cenário onde produtividade, inovação e retenção de talentos são metas centrais, ignorar esse problema pode ser a receita certeira para o colapso.
O que é o sofrimento psicológico no trabalho?
O sofrimento psicológico não se resume a diagnósticos médicos. Para Janaina Fidelis, consultora dedicada a impulsionar o desenvolvimento de líderes e equipes, ele começa quando o trabalho deixa de ser fonte de realização e passa a gerar dor, angústia e perda de sentido. Ela alerta que os sinais mais comuns aparecem de forma silenciosa, como mudanças de comportamento, queda de produtividade, irritabilidade, isolamento, crises de choro, procrastinação, autocrítica intensa e ausência em reuniões.
Renata Rivetti, especialista na ciência da felicidade e fundadora da Reconnect, destaca que esse sofrimento compromete a autoestima do profissional, gerando uma sensação de incapacidade diante das tarefas mais simples. “Começa a afetar a mentalidade, aspectos físicos do dia a dia. No final, a pessoa se sente ansiosa com qualquer solicitação. O precisamos entender é se os recursos e demandas estão adequados, se o ambiente é tóxico, que muitas vezes é o que causa o adoecimento, e também se existe uma sobrecarga no dia a dia”.
Shurato Maciel, especialista em psicologia do trabalho, defende a importância de distinguir causas internas e externas: nem todo sofrimento sentido no trabalho tem origem no trabalho. Segundo ele, "qualquer sofrimento psíquico que a causa seja o ambiente, relações profissionais ou atividades do trabalho, será considerado adoecimento psicológico laboral, desde que tenha o nexo causal”.
Observar as mudanças de comportamento no dia a dia é um caminho indicado para a identificação.
Principais sinais de sofrimento psicológico:
- Expressões emocionais e sentimentos internos: Tristeza frequente, ansiedade persistente ou diante de solicitações simples, medo constante, falta de esperança, melancolia ou tristeza recorrente, culpa exagerada por erros, sensação de desvalorização, sensação de estar invisível, baixa autoestima, perda de sentido no trabalho, sensação de incapacidade diante das tarefas e perda de sonhos e planos dentro da organização.
- Sintomas cognitivos e de atenção: Dificuldade de concentração, problemas de memória, autocrítica intensa, falta de confiança no próprio trabalho e procrastinação.
- Isolamento e mudanças sociais: Isolamento social, ausência em reuniões, redução de interações com colegas.
- Comportamentos reativos ou impulsivos: Irritabilidade, agitação, crises de choro.
- Queda de desempenho e engajamento: Queda de produtividade, sensação de sobrecarga constante, falta de motivação para executar tarefas, atrasos ou ausência em compromissos recorrentes.
- Sinais físicos observáveis: Cansaço físico constante, falta de apetite, insônia frequente, semblante abatido.
Os números da crise: o que diz a pesquisa da YouGov
A pesquisa da YouGov, publicada em junho de 2025 pelo Valor Econômico, analisou 205,2 mil respostas de brasileiros ao longo de um ano. Os dados mostram que 7% das pessoas atuam sob ansiedade, 4,8% sob depressão e 1,7% sob estresse. Há ainda menções, em menor escala, a transtornos como Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), bipolaridade, estresse pós-traumático e abuso de substâncias. Além disso, 3,6% das pessoas afirmaram estar fora do mercado de trabalho por conta de questões de saúde mental.
A boa notícia? Para 67% das pessoas, “conversar sobre saúde mental é importante”. Ou seja: existe abertura social para enfrentar o problema — o que falta é estrutura organizacional e atitude.
Por que os profissionais estão adoecendo? Os fatores organizacionais mais citados
Os especialistas entrevistados apontam um conjunto de fatores recorrentes nas empresas brasileiras que explicam boa parte dos casos de sofrimento psicológico.
Ana Freitas Cacciacarro, coach, mentora e especialista em desenvolvimento humano dentro das organizações, afirma que "o problema não é o estresse em si, mas sim a falta de recuperação". Ela destaca que a ausência de pausas e do tempo necessário para se recuperar de jornadas longas ou de projetos intensos, muitas vezes em cenários de demandas acumuladas, sejam profissionais ou familiares, acaba levando as pessoas a se perderem em termos de organização, autocuidado e bem-estar.
Renata Rivetti defende que a causa raiz está nos modelos corporativos que priorizam o presenteísmo, ou seja, um modelo em que as pessoas trabalham muitas horas por dia, se sentem muito ocupadas e têm a culpa de estarem disponíveis quase o tempo todo. “E isso obviamente tem trazido ansiedade, sintomas de burnout, além de afetar a saúde mental”, explica.
Para ela, muitas empresas entendem que existe um problema em saúde mental, mas têm tratado muito os sintomas, e não a causa raiz. “Elas dão aulas de meditação, terapia, ginástica e programas de bem-estar, mas não atuam na causa raiz do problema, que tem a ver com a sobrecarga, com uma liderança tóxica, falta de segurança psicológica, falta de pertencimento, de inclusão”. explica.
Janaina Fidelis aponta que o sofrimento se intensifica em culturas baseadas no medo, metas inatingíveis e ausência de diálogo: “cultura tóxica, lideranças despreparadas e estruturas inflexíveis são os principais gatilhos”. Para ela, o sistema que valoriza desempenho a qualquer custo está falhando em respeitar limites humanos.
Os principais problemas citados pelos especialistas são:
- lideranças abusivas ou despreparadas;
- falta de reconhecimento e segurança psicológica;
- jornadas longas e metas irrealistas;
- ausência de propósito e sentido no trabalho;
- estrutura de trabalho que desvaloriza o bem-estar.
Invisibilização do sofrimento
Mesmo diante de sinais evidentes, o sofrimento psicológico ainda é um tabu dentro das empresas. Janaina Fidelis destaca o medo dos profissionais de se mostrarem vulneráveis: “existe um tabu que associa sofrimento emocional à fraqueza ou falta de preparo”. Isso gera uma cultura de silenciamento, na qual “o sofrimento aparece mascarado como falta de engajamento, quando na verdade é um pedido de socorro”.
Rivetti reforça que as lideranças, muitas vezes, ignoram os sinais para não se responsabilizarem. Segundo ela, "somente 10% dos profissionais falam sobre sintomas de burnout".
Já Shurato Maciel acredita que o problema não é a invisibilidade dos sintomas, mas a ausência de ação: “é perceptível o comportamento do colaborador em um nível de estresse ou alteração de humor”. O desafio, segundo ele, é o preconceito, que leva à normalização da dor e impede o acolhimento.
O papel do RH e da liderança: convergência entre especialistas
Os quatro especialistas convergem em um ponto-chave: o RH e a liderança são responsáveis por promover ambientes saudáveis — e essa responsabilidade não pode ser terceirizada.
Fidelis defende que a mudança começa pelo fortalecimento da liderança. Para ela, as empresas precisam de líderes emocionalmente maduros, capazes de construir relações seguras, dar feedbacks respeitosos e acolher vulnerabilidades sem julgamento.
Ana Freitas complementa que esse trabalho precisa ser estruturado e técnico. “A prevenção exige pesquisas de clima bem feitas, levantamento de dados e escuta ativa. E isso só funciona com apoio de psicólogos externos, que não estejam envolvidos na política da empresa e tenham autonomia para propor ações efetivas”.
Shurato Maciel destaca que o RH deve “capacitar a gestão sobre sua responsabilidade trabalhista, civil e criminal sobre os impactos do descuido da saúde mental”. Ele defende canais de denúncia, pesquisas frequentes e a construção de uma rotina de cuidado.
“O RH deve construir cultura de cuidado com política, processo e postura, não com eventos pontuais”, afirma Rivetti.
O perigo das ações simbólicas e as armadilhas do marketing de bem-estar
Os especialistas são unânimes em criticar as ações simbólicas que não enfrentam o problema real. “O primeiro passo é parar de confundir bem-estar com ‘dia do lanche saudável’ ou ‘aula de ioga na sala de reunião’”, afirma Janaina Fidelis. Para ela, estratégias efetivas tocam as causas, e não apenas os sintomas.
Renata Rivetti reforça que empresas ainda premiam o profissional presente o tempo todo, mesmo que esteja esgotado. “A gente ainda valoriza o workaholic como se isso fosse sinônimo de resultado. Mas não é.”
Maciel lembra que o cuidado não pode ser sazonal: “a saúde mental deve ser cuidada e prevenida contra o sofrimento psíquico diariamente, não apenas em situação crítica ou campanhas anuais”.
Do discurso à prática: o que sua empresa pode fazer agora
Para além do diagnóstico, os especialistas propõem caminhos práticos e viáveis para qualquer organização comprometida com a transformação cultural em defesa da saúde mental. Algumas propostas são:
- Mapeamento real do clima organizacional: aplique diagnósticos confiáveis, com metodologia transparente e escuta ativa.
- Capacitação da liderança: treine gestores para identificar sinais de sofrimento e lidar com vulnerabilidades sem preconceito.
- Criação de comitês internos de saúde mental: envolva diversas áreas para elaborar planos de ação permanentes.
- Apoio psicológico externo: disponibilize atendimento sigiloso e profissional fora da estrutura hierárquica.
- Feedbacks estruturados e humanizados: transforme as avaliações em rituais de desenvolvimento, não de punição.
- Flexibilização do modelo de trabalho: ofereça alternativas de jornada e promova autonomia.
- Cuidado cotidiano: incentive rodas de conversa, momentos de escuta e reconhecimentos públicos regulares.
Segundo Ana Freitas, “incentivar um trabalho de desenvolvimento, identificar talentos e usar ferramentas de assessment para alinhar papéis e perfis pode promover bem-estar e evitar o adoecimento”. A especialista também destaca a importância de um olhar mais individualizado: “olhar o colaborador não como um número, mas como alguém com competências únicas”.
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Sui é jornalista, compositora e cantora. Possui bastante experiência em Educação e Política, com agências e clientes da esfera pública.