Como o programa de aprendizes para pessoas trans da Diageo está gerando empregos e transformando vidas no Ceará
Na fábrica da cachaça Ypióca, em Fortaleza, companhia criou um programa pioneiro de aprendizagem para pessoas trans.

Pelo 17º ano consecutivo, o Brasil ocupa a liderança do ranking dos países que mais matam pessoas trans no mundo, segundo o relatório Trans Murder Monitoring. No mapa da violência, o Ceará aparece com destaque não apenas pelo número de homicídios, mas também pelo impacto social da exclusão que atinge de forma profunda a população trans da região.
Foi justamente com o propósito de ajudar a transformar esse cenário que a Diageo, fabricante de marcas como Johnnie Walker, Smirnoff, Tanqueray e Ypióca, criou o Projeto Journey, um programa de jovens aprendizes para pessoas trans, implantado na fábrica da Ypióca.
Nos 18 meses de duração de cada turma no projeto, além da obrigatoriedade de estarem matriculados em um curso oferecido por instituições de ensino qualificadas, os jovens participam de atividades práticas em diversos setores da empresa, desde o financeiro, passando pelo administrativo até a produção.
Mais do que oferecer oportunidades de emprego, a iniciativa se propõe a enfrentar desafios estruturais, como preconceito, vulnerabilidade econômica e isolamento social, que moldam a trajetória de tantas pessoas trans no Estado.
“Começamos em 2022 com o desafio básico: preparar mulheres cis para dividir o banheiro com mulheres trans, e preparar os homens cis para dividir com homens trans. Hoje, já alcançamos uma maturidade considerável em relação ao ambiente inclusivo. As pessoas dizem que se sentem na Disney quando entram na fábrica, porque lá tem ‘bom dia’, são tratadas com respeito. Fora da fábrica, muitas vezes, nem sequer são cumprimentadas”, conta Ana Kelly Melo, head de DEI e HR Business Partner da Diageo.
Desde sua criação, o Journey já transformou a trajetória de 46 aprendizes - dos quais 16 participam atualmente. Até agora, 12 participantes foram efetivados: 8 na própria fábrica da Ypióca, e 4 em empresas parceiras. Isso significa que mais de um quarto das pessoas que passaram pelo programa conquistaram uma oportunidade permanente.
Nesta entrevista ao blog da Flash, a executiva compartilha os bastidores do projeto, fala sobre os desafios de implantar a iniciativa em um ambiente fabril tradicional e reflete sobre o impacto social profundo que o Journey vem provocando dentro e fora da empresa. Confira abaixo:
Como nasceu o projeto Journey?
Ana Kelly Melo: O Journey foi inspirado em um programa que temos em São Paulo, o Origens, que nasceu na pandemia e é 100% afirmativo para pessoas negras. Temos nossa operação em Fortaleza, onde fica a fábrica da cachaça mais antiga do mundo, e veio esse insight do time: que iniciativa poderia ser feita lá?
O Nordeste já tem uma autodeclaração de pessoas pretas e pardas muito expressiva, com uma grande atividade desse público na fábrica. Mas o Brasil está há anos no topo do ranking dos países que mais matam a população LGBTQIAPN+, e o Ceará é um dos Estados que lideram esta lista.
Temos um cenário em que a população trans vive em situação de vulnerabilidade, que leva para um caminho de violência, agressão e rejeição familiar. O Journey nasce inspirado nesse programa de São Paulo, mas com uma perspectiva local.
O nome tem algum significado especial?
É uma jornada de resgate. O termo é em inglês porque somos uma companhia global, e a ideia é ressignificar a jornada: “Nasci uma pessoa trans no Nordeste, no Ceará. Minha expectativa de vida é baixa, tenho um destino pré-determinado”. Convidamos essas pessoas para uma jornada diferente.
Quais foram os principais desafios de lançar essa iniciativa no Ceará?
São vários. O contexto de violência traz uma carga muito pesada, mas, ao mesmo tempo, o Ceará é um Estado que tem uma secretaria de Diversidade. Vemos que quanto mais exclusão, mais resistência.
Além do contexto geográfico, a cultura fabril é predominantemente masculina, e, embora tenhamos iniciativas de equidade de gênero, o ambiente tradicional e menos aberto ao progresso foi um desafio inicial. Mas, ao mesmo tempo, foi este mesmo local que proporcionou sustentabilidade ao Journey. A cultura de fábrica estabelece regras de respeito, inclusão e a tendência é que as pessoas adotem.
Como foi a implantação?
Um ponto foi a participação ativa dos integrantes. As primeiras mulheres e homens trans do programa foram também professores: nos mostraram como fazer, quais os desafios. Não tínhamos como antecipar todos os pontos de tensão.
Não tínhamos nem as perguntas para ter as respostas. Compartilhando o desafio, as ações surgiram: rodas de conversa propostas pelos próprios integrantes; jornadas de desenvolvimento complementares às que já havíamos estabelecido; campanhas de conscientização. O programa se estruturou nessa jornada de identificar desafios, corrigi-los e, a partir disso, criar estratégias de prevenção.
E tem uma coisa muito relevante quando a gente trabalha com diversidade: admitir que não sabemos tudo. Esse foi talvez o pulo do gato do Journey. Queríamos fazer, não sabíamos 90% do que esperar, mas o nosso compromisso com os 10% fez o sucesso acontecer.
É um processo contínuo, então?
Sim, é contínuo. Começamos em 2022 com o desafio básico: preparar mulheres cis para dividir o banheiro com mulheres trans, e preparar os homens cis para dividir com homens trans. Hoje, já temos uma maturidade considerável em relação ao ambiente inclusivo.
Mantemos uma rotina com um bate-papo comigo e um acompanhamento muito próximo. Eles sempre dizem uma frase que mexe comigo em lugares não necessariamente positivos: eles se sentem na Disney quando entram na fábrica de Ypióca, porque lá têm “bom dia”, são tratados com respeito. Fora da fábrica, muitas vezes, nem sequer são cumprimentados.
E como foi a recepção desses novos funcionários?
Outro impacto que trabalhamos é a barreira da inclusão. Ela já foi superada e agora nossa grande preocupação é que os profissionais tenham uma jornada para além do programa de aprendizes.
Já superamos essa barreira e agora nossa grande preocupação é que elas tenham uma jornada para além do programa de aprendizes. A partir do próximo ano fiscal, vamos incluir uma jornada de educação financeira, para que elas possam se planejar nesses 18 meses. Para que o programa não seja um interruptor de liga e desliga: hoje tenho renda, mas amanhã não tenho e volto para um cenário de vulnerabilidade. Felizmente, até agora, ninguém voltou para esse contexto, mas queremos garantir uma transformação perene.
O que diferencia o Journey de um programa tradicional de aprendizagem?
O principal diferencial é ser 100% afirmativo, com acesso ao plano de saúde, que inclui suporte para a transição de gênero. Temos também um programa de apoio aos colaboradores, com 10 sessões de terapia.
O ambiente de segurança psicológica também propicia que a transição aconteça ou avance. Muitos aprendizes chegam no início da transição, e podem sair [do programa] com uma identidade mais estabelecida.
Que cuidados vocês tomaram para que o processo seletivo fosse inclusivo?
No início, só tínhamos perguntas e nenhuma resposta. Hoje, 90% das vagas são preenchidas por indicação: uma amiga puxa outra, uma outra avisa: “Olha, meu contrato está acabando, vai abrir minha vaga. Vai lá e se candidata!”.
Nossa recrutadora na época se preparou para conduzir entrevistas inclusivas, e a Diageo promoveu letramentos com as lideranças. Conseguimos criar um employer branding de que a Diageo é um lugar recomendado para pessoas trans trabalharem e funciona muito com indicação.
Leia também: O que é uma vaga afirmativa? Entenda seu papel em prol da diversidade
Qual foi o desafio mais complexo até agora?
O medo do assédio. Tivemos um caso de assédio a uma mulher trans e desligamos a pessoa assediadora depois da denúncia. Isso é um processo muito sério para a gente, independentemente de ter qualquer marcador de diversidade.
Mas só podemos atuar se a denúncia do assédio chegar até nós de alguma maneira. O principal receio é o que acontece fora da fábrica —na rota do transporte, por exemplo. Ainda que dentro tenhamos segurança, fora é outra realidade.
E tinha a questão do isolamento: é natural que elas se agrupem para criar um ambiente seguro. Nosso trabalho é inseri-las nos fóruns coletivos, projetos, ações que promovam integração, além de capacitar lideranças para identificar comportamentos excludentes, mesmo que sutis.
Esse isolamento é mais fácil de identificar, mas a questão do assédio envolve a relação com a imagem que têm das pessoas trans, porque é um corpo que é muito estereotipado, violentado e objetificado. Então mesmo os mais LGBTfóbicos acreditam ter algum direito sobre os corpos dessas pessoas, infelizmente.
Que mudanças o projeto trouxe para a cultura da empresa?
O projeto trouxe muitas mudanças para a comunicação e não porque agora falamos “todes”. Mas porque passamos a considerar todas as pessoas na comunicação. Isso melhora nossa forma de nos prepararmos para reuniões, processos, decisões.
Percebemos mulheres, negros, pessoas com deficiência, tendo mais voz, mais segurança psicológica, e se sentindo mais pertencente àquele ambiente.
E o grande legado do Journey é para a sociedade: o que queremos fazer além de vender cachaça? A Ypióca é um orgulho. Então, se tem uma marca que tem que liderar uma transformação social, é ela. O Journey impacta famílias: temos relatos de pessoas que voltaram a falar com a família, começaram faculdade, reestabeleceram vínculos, incentivaram outras pessoas trans.

Como você vê o momento atual, com empresas reduzindo investimentos em diversidade?
É um contexto desafiador, mas minha abordagem é sempre em prol de algo, e não contra. Já fez o exercício de nadar contra a maré? Cansa muito mais rápido. Estou em prol da inclusão e essa também é abordagem da Diageo. Não só o Journey, como o Origens e todas as iniciativas da empresa não vão recuar neste momento.
Muitos movimentos de organizações recuaram, mas têm muitos se sustentando. E é flutuante, vai voltar, principalmente no Brasil, em que não é negociável não ter diversidade. Quem quiser fazer um negócio aqui, vai ter que manter estas iniciativas.
Na minha perspectiva, é a hora de reprogramar a abordagem para atuar em prol [da diversidade]. Não está tudo perdido. Nesses momentos, às vezes, temos a tendência de achar que está, mas é importante trazer programas como o Journey como faróis para continuar.
Continue aprendendo: É o fim das políticas de diversidade e inclusão nas empresas?
O que falta para que a inclusão de pessoas trans seja uma realidade?
Falta intenção, conhecimento, disponibilidade. Enquanto temos mecanismos legais para inclusão de pessoas com deficiência e pessoas negras, não temos para a população LGBTQIAPN+, além da tipificação do crime de homofobia. Hoje, dependemos muito de atitudes individuais em posições de poder para ter impacto coletivo.
Falando em espaços de poder, como engajar lideranças para que a diversidade não fique só no papel?
Uma das chaves é associar números a pessoas. Quando falamos “somos 10% da empresa”, é abstrato. Agora quando nomeamos: “é a Ana Paula, a Marília e a Ana Kelly”, isso mexe com a liderança de uma forma diferente porque é uma pessoa do seu time.
Foi o que aconteceu no movimento de gênero: ao perceber que eram pessoas próximas, colegas de trabalho, houve mudança. Então essa sensibilização e os cases positivos são essenciais.
Se você ligar para um outro executivo e perguntar o que ele acha de fazer um programa de aprendizes afirmativo para pessoas trans na empresa dele, a primeira coisa que vai vir na cabeça é o medo de não dar certo. Como quebramos esse medo? Contando sobre programas como este. Dessa maneira você já vai quebrando todos os estereótipos do que podia não dar certo.
Que aprendizados do Journey podem inspirar outras empresas?
A iniciativa independente dos receios. Se propor a fazer um programa como esse ou que contemple outros marcadores sociais de diversidade, tendo a humildade de reconhecer que não teremos as respostas, mas a disponibilidade de fazer acontecer.
A chave do Journey foi a coragem de tentar, apesar de todos os nãos e possibilidades de dar errado que tinha, a companhia se propôs a fazer isso com qualidade e aprender com os erros. Sabemos que tudo pode dar errado. Só que vamos nos omitir num contexto geográfico como foi o do Ceará? Já está dando errado para essa população e temos a possibilidade de fazer dar certo.
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