“Quem deixou de investir em diversidade é porque nunca teve um compromisso real com o tema”, diz presidente do Fórum Brasil Diverso
Em entrevista exclusiva, Maurício Pestana analisa os desafios da diversidade racial nas empresas e defende que empresas brasileiras podem dar exemplo ao mundo.
A quantas anda a diversidade racial nas empresas? Apesar da pauta ESG estar cada vez mais em alta, a representatividade de pessoas negras nas companhias, especialmente em cargos de liderança, parece não acompanhar o discurso corporativo.
Segundo levantamento do Instituto Ethos, apesar de ser 55,8% da população brasileira, as pessoas negras ocupam apenas 4,7% dos cargos de liderança das 500 maiores empresas do país.
Já o estudo recém-divulgado “Mulheres em Ações", da B3, que busca mapear a evolução da diversidade no mercado brasileiro, aponta que das 359 empresas avaliadas em 2024, 354 (98,6%) declararam não ter nenhum diretor estatutário preto e 315 (87,7%) não possuem diretores estatutários pardos. No levantamento de 2023, eram 337 companhias sem pessoas pretas na diretoria estatutária e 305 sem pessoas pardas.
Para Maurício Pestana, presidente do Fórum Brasil Diverso, iniciativa com 10 anos de atuação que catalisa tendências voltadas para a equidade, diversidade e inclusão na sociedade, os números não refletem exatamente uma diminuição de investimentos no tema, mas sim o abandono de companhias que nunca foram verdadeiramente com a questão.
Em entrevista ao blog da Flash, Maurício, que também é CEO do grupo Raça de Comunicação e colunista na CNN Brasil, comentou sobre o avanço das políticas de inclusão nas empresas do Brasil, além da sua visão sobre o possível retrocesso na agenda de diversidade neste ano. Confira a seguir:
Ao longo dos 10 anos do Fórum Brasil Diverso, como você avalia a maturidade das empresas brasileiras para falar em diversidade racial?
Maurício Pestana: Há 10 anos, na primeira edição do Fórum, eu era secretário da Igualdade Racial e ia implantar uma política de ações afirmativas na Prefeitura de São Paulo. Era para ser um encontro interno com secretarias, mas resolvi ampliar e chamar a sociedade civil, as empresas. Convidei presidentes de grandes companhias para saber como estavam a diversidade e a inclusão nessas empresas. Na época, tinha meia dúzia de empresas brasileiras fazendo alguma coisa.
O mais espantoso é que a gente contou com a participação de 230 organizações, que apareceram muito mais para saber que movimento era aquele. Isso porque, naquela época, já haviam grandes empresas estrangeiras atuando na área da diversidade e da inclusão nas suas matrizes, como França e Estados Unidos, sobretudo. Por conta da Lei dos Direitos Civis [lei americana de 1964 que proíbe a discriminação com base em raça, cor, religião, sexo, nacionalidade e, posteriormente, orientação sexual e identidade de gênero], já havia no EUA empresas com grande experiência no assunto.
Dá para dizer que os EUA são ainda hoje o país referência quando a gente pensa em diversidade racial nas empresas?
Maurício: Eu diria que o Brasil avançou muito mais do que eles em dez anos, mas eles têm uma experiência anterior à nossa de quase 30 anos. O fato de eles terem uma legislação muito consistente sobre ações afirmativas faz com que tenham um número maior de empresas que investem sobre o tema, uma política muito mais consolidada, que ultrapassa hoje todos os ataques de grupos conservadores, Suprema Corte e outros aparelhos que estão tentando desmobilizar esse avanço. Porém, aqui no Brasil, nesses últimos 10 anos, nós continuamos avançando. Então, são processos diferentes.
Qual a explicação para esse avanço?
Maurício: Uma norte-americana que esteve em um dos painéis do Fórum Brasil Diverso falou que ela se surpreende com o quanto o Brasil avançou e o quanto os Estados Unidos não retrocederam. O Brasil tem um ambiente muito mais propício a essas empresas, para essas políticas se consolidarem e não retrocederem porque temos uma população mais diversa: quase 60% da população é negra. Nos Estados Unidos é 13%.
Então aqui é muito difícil você ter um recuo. Até brinquei na minha fala no Fórum: nos Estados Unidos as ações afirmativas são uma questão legal. No Brasil é uma questão moral. Primeiro pela população e segundo que fomos o último país a libertar os escravizados. Nunca houve uma política afirmativa. Enquanto nos EUA eles criaram uma série de mecanismos para expandir a população negra, aqui a única coisa que a gente conseguiu foi colocar cotas nas universidades e alguma coisa no Estado e em algumas prefeituras. Aqui podemos dar um exemplo para o mundo.
Porém, alguns especialistas têm apontado uma redução nos investimentos em diversidade nas empresas em 2024, apesar de o conceito de ESG estar muito em alta. Que leitura você faz desse cenário?
Maurício: Vou começar respondendo à sua pergunta pela pesquisa que a Folha de S.Paulo fez duas vezes [em 1995 e 2008], perguntando se o brasileiro achava que tinha racismo aqui. E aí você tem quase 90% das pessoas falando que tem. E quando perguntavam se as pessoas se consideravam racistas, quase 90% falava que não. Então, está muito ligado a isso. O Brasil é um país extremamente racista e preconceituoso, que só toma algumas decisões quando é pressionado.
Por mais que nós tenhamos avançado nas políticas de igualdade racial nos últimos 10 anos, muitas empresas foram obrigadas pelas suas matrizes ou por uma onda pós-George Floyd [norte-americano negro assassinado por um policial branco]. Então, você tinha que fazer alguma coisa, independentemente de querer ou não. A partir do momento que você tem essas políticas freadas até por conta dessa onda conservadora nos Estados Unidos, aqueles que aqui fizeram por uma pressão de fora, do mercado ou de outros agentes, foram os primeiros a sair fora. Mas esses caras nunca estiveram dentro. São empresas que usaram uma onda, do marketing para colocar negro na propaganda. Quem não está investindo é porque nunca teve compromisso.
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Você não vê um retrocesso, então?
Maurício: Eu acho que as empresas que têm compromisso vão continuar investindo porque a diversidade é mais do que uma questão de modismo. Quem sabe profundamente, quem estudou entende que ela dá lucro, melhora o ambiente de trabalho e a produtividade. Dá lucro porque está olhando para um público consumidor que é 60% da população do país. E essas empresas sabem que não há mais ambiente para o racismo na sociedade.
Hoje, se você se sente discriminado, os canais para você denunciar são muitos. E em um país onde mais da metade da população é negra, basta ser um pouco inteligente para saber que é preciso estar nessa onda. Quem sai disso corre o risco de ter o seu negócio afetado em uma velocidade ou em um tempo muito mais curto do que imaginava. Agora, é aquilo, o racismo existe. A empresa não é obrigada a fazer. Então, para algumas é mais fácil não fazer.
Outro desafio que vemos é falar em negros em posições de liderança. Como fazer isso acontecer para além de a empresa abrir um processo seletivo para negros?
Maurício: Obviamente, em um país em que as empresas foram construídas sobre o signo da exclusão, leva-se um tempo para você formar uma liderança, um CEO. E se você levar em consideração que pouco tempo antes de George Floyd nem existia essa discussão na maioria das empresas, você tem um processo temporal para que se chegue a essa maturidade de ter CEOs negros. Hoje as empresas têm poucos, mas muitas estão investindo nisso, em programas de trainees. Elas sabem que não vai ser algo a curto prazo, mas que nós vamos chegar lá. Então há um caminho interessante.
Podemos dizer que para a mulher negra torna-se ainda mais difícil chegar à liderança?
Maurício: As mulheres e os grupos LGBTQIA+ encontram as maiores dificuldades quando são negros porque recebem a dupla discriminação. E isso é muito fácil de ser notado. As mulheres negras são o grupo com maior representatividade numérica na sociedade brasileira (28%). Já vi pesquisas que dizem que há mais mulheres negras nas universidades do que de homens negros. Pensando aqui, eu também conheço muito mais mulheres negras na universidade, com curso superior, mestres, do que homens. Porém, se eu fizer uma lista de CEOs, hoje eu conheço muito mais homens negros nessa posição.
Você falou da importância de um trainee, mas para além de ações como essa, uma vez que a pessoa está inserida, é preciso haver um letramento racial para que ela se sinta pertencente?
Maurício: Eu costumo dizer nas minhas palestras em empresas sobre letramento racial, que as grandes empresas, em sua maioria, principalmente as transnacionais, foram criadas no século 20, todas em um ambiente extremamente excludente. O CEO sempre era visto como um homem branco, de 50 anos ou mais e cabelo branco. Esse é o imaginário das empresas. Quando você olha as diretorias, só tem homens, com uma ou outra mulher.
Então, com essa cultura, que é a alma do negócio, não foi construído no imaginário das pessoas que habitam esses lugares pessoas de cabelo rastafari, negros, carecas. Quebrar isso não é só você chegar lá e colocar pessoas pretas para trabalhar, só recrutar. Porque a pessoa [preta] vai se sentir também um peixe fora d’água.
É preciso mexer em toda uma estrutura?
Maurício: Sim. Agora, eu fico impressionado porque as empresas se prepararam para algumas outras mudanças estruturais ao longo do século 20. Vou te dar exemplo: até final do século passado, tiveram que se adaptar à ISO 9000 [certificação], que mexe profundamente com a estrutura delas. Ou se adaptavam ou morriam. Agora a gente está vivenciando o mesmo com a IA. Elas têm que se adaptar.
Mas quando você fala da inclusão, como ela mexe não só com essa estrutura, mas também dentro da casa e com a descendência das pessoas, é uma coisa mais profunda. Uma coisa é a empresa amanhã ter que mexer num processo de produção. Agora, quando você mexe com isso tudo e com o racismo que elas trazem é mais difícil. Então, as empresas têm que estar preparadas para isso. É um grande desafio, e ele começa com a empresa mexendo no que há de mais profundo para a sua sobrevivência, que é tentando tocar as pessoas. Porque qualquer negócio é feito por pessoas.
Você é um otimista, então, com relação ao avanço da diversidade racial nas empresas?
Maurício: O Brasil tem tudo para ser uma referência no tema. O Brasil não é os Estados Unidos, não é a África do Sul, não é nenhum outro lugar que nem teria, talvez, a obrigação moral de avançar. Volto a dizer: nos Estados Unidos, 13% da população é negra. A África do Sul está na África, realmente as pessoas negras têm mais é que comandar. Agora, o Brasil é o maior país negro fora da África, tem quase 60% da sua população formada por afrodescendentes, há uma dívida histórica gigantesca do Estado brasileiro com essa população.
E, por isso, o Brasil tem tudo para dar um exemplo para o mundo. Não vou entrar em questões políticas, mas o Brasil conseguiu eleger um boia-fria, um semianalfabeto para Presidente da República, conseguiu eleger uma mulher, coisa que os Estados Unidos não conseguiu. Então, o Brasil tem um papel moral. Já o faz no futebol, que tem diversidade, na cultura. No Carnaval, que é a maior festa popular do mundo, mas tem que fazer isso também nas empresas.
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Jornalista e mãe do Martin. Além de colaborar com a Flash, é assessora de imprensa na área de música e escreve sobre cultura em veículos de imprensa.