"Ninguém falava sobre o esgotamento entre os líderes", diz ex-CEO que enfrentou o burnout
Em entrevista exclusiva, Deborah Wright, uma das primeiras CEOs mulheres do país, conta como enfrentou o burnout — numa época em que nem se falava disso.
Deborah Wright é uma desbravadora. Em 1995, aos 38 anos, chegou à presidência de uma empresa quando, no Brasil, poucas mulheres chegavam ao cargo de CEO. Ao longo dos outros quinze anos, ocupou a mais alta cadeira de companhias líderes de mercado em sua época, como Kibon, Parmalat Brasil, Tintas Coral e Grupo Pão de Açúcar.
Em 2010, depois de quase três décadas no mundo corporativo, trocou a carreira de CEO para se lançar como conselheira administrativa independente, aproveitando sua experiência na liderança e seu olhar estratégico.
Mas, o que a fez repensar a rota profissional aos 53 anos, no auge de sua trajetória? Claro, os motivos foram vários, porém, a experiência de ter passado por um episódio de burnout contribuiu.
“Quando eu tive o que hoje eu reconheço como burnout, nem se usava essa palavra. Era um esgotamento nervoso, acho que esse era o termo", afirma.
"Agora conseguimos entender que é uma síndrome de esgotamento profissional, tanto que foi classificada como uma doença ocupacional. É resultado de muitos anos de estresse, de cobrança, de entrega, de alta responsabilidade, de viver em um ambiente competitivo. Agora, me diz quem não vive isso hoje?”, questiona.
Atualmente, Deborah integra os conselhos executivos do Banco Santander, do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e do Women Corporate Directors. Em seu livro, “Senhora de Si: Trajetória, Aprendizados e Lições de uma Executiva Desbravadora” (editora Labrador), lançado em 2022, a conselheira compartilha sua história pessoal e profissional.
Neste Janeiro Branco, quando as atenções se voltam mais ainda para a importância dos cuidados com a saúde mental, Deborah concedeu uma entrevista ao blog da Flash.
Abaixo, a executiva explica como enfrentou a situação, aponta os sinais que servem de alerta para os profissionais e dá dicas para líderes de RH construírem uma cultura corporativa saudável. Confira, a seguir:
Em 2010, como você descobriu que não estava bem?
Quem percebeu foi minha família. Eles identificaram que eu não estava bem porque estava tendo reações, em casa que não eram comuns. Fomos ao psiquiatra, que constatou: eu estava exausta.
Para se ter ideia, não me lembro nem da consulta. Felizmente, o episódio foi rapidamente identificado. O médico me medicou e orientou minha família a me levar para casa e a me colocar para dormir, porque o cérebro precisava repousar.
Eu estava mais acelerada do que nunca, mandando e-mail atrás de e-mail, pois acreditava que estava tendo ideias extremamente criativas. Durante o tratamento, minha filha sumiu com meu celular. Essa fase durou, ao todo, dez dias. No fim, apesar de já estar me recuperando, eu não tinha lembrança dos últimos dias.
Quais são os sinais de burnout que devem servir de alerta?
Os primeiros são os distúrbios de sono. Se você sempre foi uma pessoa que dormiu um certo número de horas e, de repente, não consegue dormir ou acorda no meio da noite e começa a rever todos os problemas, é melhor ter atenção. A qualidade do nosso sono é essencial, porque é aí que a gente se recupera.
O segundo é viver cansado. Se você está com a saúde em dia, é jovem, pega um fim de semana prolongado só para dormir e ficar no sofá, mas depois desse descanso a exaustão não passa, isso também é um sinal de alerta. Porque é o tal acúmulo, o copo vai enchendo.
Algumas pessoas têm distúrbios intestinais, pois existe uma ligação entre o cérebro e o intestino. Outras começam a ter dor de cabeça do nada. Passam a ficar depressivas, desanimadas. Então, tem uma série de sinais
E quais os sinais emocionais?
É comum, por exemplo, começar a duvidar da própria capacidade, acreditando que não vai conseguir fazer algo que fez a vida inteira, que sabe que domina. Sentir insegurança quando vai fazer alguma coisa nova, que nunca fez, é normal. Mas se não for palpável, algo está errado.
Que dicas você daria para evitar o burnout?
O autoconhecimento é fundamental, assim como a atividade física. Mas também recomendo fazer detox digital, algo que até hoje, para mim, é difícil. O celular é uma conveniência, facilita a vida, agiliza.
O problema é que o ser humano se viciou nisso e nem sempre consegue distinguir o que é urgente ou o que é importante. As pessoas não sabem o que você está fazendo, vão te interrompendo sem saber que estão te interrompendo.
E como diferenciar o que é urgente ou não?
É preciso ter um método: saber filtrar o que é importante e deve ser visto na mesma hora e o que pode ficar para depois. Certas coisas vão andando sozinhas, dali a pouco se resolvem.
O que eu recomendo é: não ignore sinais, cuide da saúde física, porque ela também contribui. E cuide de ter um espaço para você, é preciso se desligar. Se domingo é dia de família, é isso e ponto. Só abra exceção em raríssimas ocasiões, como no caso de uma crise grave no trabalho.
As pessoas não podem ter liberdade de ficar acessando todo mundo a todo momento por coisas que podem ser resolvidas na segunda-feira ou no dia seguinte. O senso de urgência é importante, não estou falando que precisa ficar tudo lento novamente. O que nós não temos é limite, e precisamos começar a colocar.
Lá atrás, como a empresa reagiu ao saber do burnout?
A companhia ficou muito preocupada comigo, me deram o tempo que eu precisasse para me recuperar. Claro, havia outras pessoas para ir tocando o dia a dia, estava tudo certo. Mas lógico que há um estigma.
Pediram para a diretora de RH, uns cinco dias depois do meu afastamento, vir tomar um café na minha casa, ver como estava a situação. E tudo bem, é uma profissional muito humana. A empresa precisava entender o que estava acontecendo.
Ter sido CEO quando mulheres não ocupavam essa posição no Brasil contribuiu para seu burnout?
As mulheres sempre foram um pouco multitarefa. Nós olhamos os filhos, trabalhamos. Mas virou normal ser multitarefa, e uma hora o cérebro parece que sofre um bug, como nos computadores. Superestimulado, cansado e com excesso de informação, entra numa espécie de looping e aí você pode ter uma série de reações.
Cedo, na vida, assumi uma posição de liderança bastante importante, e tinha 38 anos quando ocupei uma posição de presidência pela primeira vez. Na ocasião, eu tinha uma filha de cinco anos.
Fora isso, da minha geração, eu fui uma das primeiras e únicas mulheres a conseguir ultrapassar o tal telhado de vidro, e com isso vem uma autocobrança muito forte, porque eu precisava ser muito melhor do que o meu colega para ser promovida. As mulheres tinham de estar sempre provando que não faziam corpo mole.
E como foi lidar com o burnout em um momento que pouco se falava sobre saúde mental?
A minha geração passou por muita coisa de uma forma empírica, nós não tínhamos tanta informação. Hoje temos até um excesso, mas fato é que informação (sobre burnout) agora existe, assim como existe consciência e existe grupo de apoio — algo que eu considero importantíssimo.
No meu caso, ninguém falava sobre isso, muito pelo contrário, havia aquele mito de que o líder tem que ser sempre muito forte, infalível. Sem direito a ter fragilidade, ficar triste, desanimar.
De lá para cá, o que mudou no ambiente corporativo?
Só recentemente a literatura começou a falar sobre a importância da cultura da empresa para a saúde de seus profissionais. Antes, entendia-se que as empresas de alta performance eram as que entregavam os melhores resultados. Hoje, você não só tem que entregar os melhores resultados, mas também olhar para todos os grupos de interesse relevantes, os stakeholders.
Evidente, então, que hoje você tem de ter uma boa entrega, mas com responsabilidade ambiental, com governança. Pensar no cliente, na sua cadeia de fornecedores, na cadeia de distribuição e nas pessoas. As corporações estão no meio de um ecossistema que precisa estar em equilíbrio, e essa consciência nós não tínhamos. Por um lado, era bem mais simples e bem menos competitivo.
Como você vê a questão do burnout nas empresas hoje?
A coisa mais importante é que já existe consciência. Mas os números são assustadores. Estamos falando de 32 milhões de pessoas, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). O que assusta é que a maioria é mulher. E isso faz sentido, porque em algumas casas ainda existe o acúmulo de funções para a mulher.
Nas gerações futuras, espero que tenhamos mais equidade para os gêneros. Por enquanto, ainda não é assim. Também é assustador saber que o burnout está crescendo entre jovens de até 30 anos. Eu passei por isso com 54 anos, numa posição de CEO. Não estou dizendo que é razoável, mas vá lá. Agora, 30 anos? Não faz sentido.
O que o RH pode fazer para modificar uma cultura que leve os colaboradores ao burnout?
O RH funciona como um grande facilitador. Faz a ponte e esclarece as dúvidas. Pode promover um ambiente aberto e transparente, que permite o debate onde todos possam ser ouvidos de verdade. E, quando o que for colocado tiver relevância, é pensar em como modificar.
Se você tem clareza dos valores e para onde se está indo, normalmente fica muito mais fácil. Algumas pessoas ficam felicíssimas em ambientes competitivos, adoram uma adrenalina, e ok, se for o que ela gosta. Mas não se pode obrigar todo mundo a adotar a mesma postura. Alguém precisa ter a liberdade e a capacidade de dizer para o líder que a ideia é muito legal, mas que, para chegar a ela, é preciso treinar as pessoas ou investir.
É possível mudar uma empresa onde haja uma cultura tóxica?
Na verdade, as mudanças começam por nós mesmos. Nas organizações é a mesma coisa. Eu vou mudar primeiro e as pessoas percebem. Além disso, precisa haver uma comunicação transparente e autêntica. Não adianta falar para uma pessoa agressiva, grosseira, que adorou a performance dela.
Ao contrário, tem de dizer: “Olha, posso falar uma coisa para você? Na reunião de hoje, você estava um pouco mais tenso, entregou sua mensagem principal com muita agressividade e isso não passou despercebido. Você precisa de alguma ajuda para repensar?” Porque, às vezes, a pessoa não se toca.
Feedback autêntico é muito importante. Com jeito, com respeito, mas com autenticidade e com exemplos. Enfim, começar a praticar isso. E praticar também o elogio, porque a gente é muito eloquente com as críticas e bem pão-duro com os elogios.
É preciso dizer para o profissional também quando ele for super bem em uma reunião. Quem não gosta de saber? Reforço positivo, até para abrir espaço para uma eventual crítica construtiva depois.
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Repórter da Unicamp, formada na USP. Tem vasta experiência em produção de conteúdo para mídias digital e impressa, e assessoria de imprensa. Passou por Grupo Folha, Record e Microsoft.