“Criar um filho nos transforma em profissionais melhores. Mas é preciso oferecer um ambiente que acolha essa transformação”, diz CEO da Filhos no Currículo
Michelle Terni explica como criar um ambiente de bem-estar parental ajuda profissionais e empresas, impactando índices como turnover e engajamento.
Que o mundo corporativo é, via de regra, um ambiente hostil para mulheres com filhos não há dúvidas. E quando a carreira de pais e mães parece entrar em rota de colisão, se alguém tiver de abrir mão da vida profissional possivelmente serão elas.
Isso é o que mostra um levantamento realizado em 2023 pela consultoria Filhos no Currículo e o site de empregos Infojobs. Segundo o estudo, 63% das mães já consideraram deixar o trabalho para cuidar dos seus filhos, enquanto isso, apenas 37% dos pais disseram o mesmo.
“Não adianta a gente entender os filhos como uma potência se o mercado de trabalho não criar um ambiente de acolhimento na prática. Por isso nasceu a Filhos no Currículo", diz Michelle Terni, co-fundadora da consultoria especializada na criação de programas de parentalidade corporativos.
Em entrevista exclusiva para o blog da Flash, a especialista falou que é preciso transformar a cultura das organizações para criar um ambiente de bem-estar parental e que ao, fazer isso, há ganhos também para o negócio. Confira a seguir!
Como nasceu a Filhos no Currículo?
Michelle Terni: Em 2018, eu havia pedido demissão do meu antigo trabalho para me dedicar à maternidade, pois estava difícil conciliar as duas coisas com a chegada do segundo filho. Eu estava com aquela sensação de cobertor curto, de não estar dando conta nem da carreira nem dos filhos. Não voltei a trabalhar depois da minha licença, mas a conta também não fechou. Percebi que o trabalho, a carreira, era algo que me nutria e eu passei a me sentir pela metade. Fiquei um ano pensando no que fazer para conciliar os dois papéis. Foi aí que eu conheci a Camila Antunes, que também é mãe de três, por meio das redes sociais, e decidimos fazer um workshop de parentalidade consciente para um grupo de executivos. Desde então, não paramos mais.
Qual a diferença entre o trabalho da Filhos no Currículo e consultorias mais tradicionais?
Michelle: Desde o início, percebemos que não bastava conectar as mães. Era preciso trabalhar a cultura da empresa e, para isso, precisávamos: 1) envolver todas as figuras de cuidado; 2) envolver as pessoas aliadas da organização, principalmente as lideranças; e 3) ajudar a empresa a olhar suas políticas e processos para realmente criar a base de sustentação de uma cultura de bem-estar parental. E são essas as premissas que levam o nosso trabalho hoje a uma consultoria mais holística sobre o tema.
Quando uma empresa chega até vocês, geralmente qual é a necessidade que elas apresentam?
Michelle: Basicamente, as empresas nos procuram para entender a experiência dos seus colaboradores e colaboradoras com filhos. Costumam trazer dados de turnover, baixo engajamento, um número pequeno de mulheres como figuras parentais e querendo entender o motivo dessa realidade. Nesse primeiro momento, o que fazemos é aplicar o que chamamos de radar da parentalidade. Este é, inclusive, um acesso gratuito oferecido pela Filhos no Currículo para ajudar as empresas a entenderem o seu grau de maturidade em bem-estar parental e qual é a manivela que precisa ser mexida. Nesse sentido, vamos analisar as lideranças, quem são os profissionais com filhos, as pessoas aliadas e as políticas e processos.
E como vocês avaliam esse grau de maturidade em relação ao bem-estar parental?
Michelle: Nós entendemos se os benefícios e as políticas da empresas são amigas da família, se as figuras parentais se sentem seguras, se as lideranças são acolhedoras ou se elas precisam de um letramento. A partir daí, fazemos um trabalho de sensibilizações, letramentos, construção de trilhas de conteúdo, cartilhas e diagnósticos para transformar a cultura da organização.
O retorno da licença-maternidade é uma das fases mais críticas. Vocês possuem alguma prática específica para esse momento?
Michelle: O que temos feito bastante é treinar um grupo de facilitadores internos para acolher as pessoas que estão voltando de licença. São pessoas que já passaram pela jornada da parentalidade, que muitas vezes ocupam uma posição de liderança e que vão ser madrinhas, padrinhos de quem está chegando nessa jornada agora. Isso tem sido muito bem avaliado porque é uma ação de acolhimento dentro da organização, que se cria essa cultura de bem-estar parental de uma maneira sustentável.
A partir disso, aos poucos, é possível reforçar o conceito de que os filhos são uma potência e não uma barreira. O exercício de criar uma criança dá oportunidade de desenvolver inúmeras habilidades, muitas delas que fazem de nós profissionais melhores. Mas para que isso aconteça, é preciso encontrar um ambiente que acolha esse profissional, essa transformação.
Quando pensamos em maneiras de tornar as empresas mais inclusivas para as mães, há iniciativas mais amplas que vão funcionar para todas? Quais seriam?
Michelle: Vou trazer aqui algumas soluções que, pela nossa experiência, funcionam na maior parte dos casos:
- Recrutamento
O primeiro ponto, partindo da jornada do colaborador, é o recrutamento. Ele é um momento bem decisivo para você gerar ou não uma sensação de pertencimento e acolhimento para as figuras maternas. Então, a primeira dica é pensar realmente num processo de recrutamento que seja inclusivo, em que perguntas delicadas não são feitas e as pessoas são reconhecidas pelas suas competências. É preciso suspender o julgamento e questionar, de fato, o que faz a diferença do ponto de vista profissional.
- Monitorar
A segunda dica é medir. Só transformamos aquilo que conhecemos. Então, é muito importante mensurar os índices que estão associados a um ambiente de bem-estar parental ou não. Um grande índice aqui, comum de ser mensurado, é a taxa de turnover, ou seja, a taxa de evasão de mulheres após o retorno da licença-maternidade. Essa é uma informação que eu sugiro que a empresa saiba na ponta da língua, assim como a distribuição de mulheres ao longo da cadeia produtiva em todas as posições, principalmente de liderança.
- Pré e pós licença-maternidade
Conectado com os dados que devem ser medidos, é preciso olhar estrategicamente para a saída e o retorno da licença-maternidade. Com ou sem investimento, esse momento pode ser cuidado de uma maneira muito próxima. É possível fazer um plano de transição, mostrando com clareza como ficarão as atribuições e quem assumirá as responsabilidades da colaboradora nesse período em que ela estiver fora. É preciso manter uma comunicação clara e criar um re-onboarding para que as pessoas sejam acolhidas no retorno, agora ocupando esse novo papel, não só como profissional, mas como mãe.
- Promover a flexibilidade
Outras duas medidas, mais associadas a benefícios e políticas, que são muito bem-vindas, são jornadas de trabalho mais flexíveis. A flexibilidade é amiga da maternidade. Nesse sentido, é bem-vindo pensar em uma jornada flexível, que proporcione um retorno gradual depois da licença, por exemplo. Também é possível entender a possibilidade de licenças-estendidas aumentando o tempo em que os profissionais podem ficar, caso desejem, com a criança.
- Licença-parental
Por fim, por menos intuitivo que seja, é preciso entender que essa não é uma jornada exclusiva da maternidade e devemos incluir outras figuras de cuidado. Quando entendemos isso, entendemos que as organizações também precisam pensar em políticas que sejam estendidas para essas pessoas, permitindo que as mães sejam protagonistas nas suas carreiras.
Quais os principais desafios dessas mães no dia a dia do trabalho?
Michelle: Geralmente, os depoimentos que recebemos estão associados a alguns vieses e verdades absolutas que essas mães colocam diante de si, de uma obrigatoriedade de dar conta de tudo, de forma perfeita, sozinhas, sem rede de apoio. Essa expectativa irreal faz com que realmente filhos e carreira não consigam coexistir. O nosso trabalho é, então, estimular a consciência sobre a construção de uma rede de apoio e planejamento priorização de papéis. Fora isso, revisitar a culpa, entendê-la como algo que precisa ser assumida com auto responsabilidade — e não simplesmente deixá-la dominar. As organizações ocupam um papel importante para desconstruir muitas dessas verdades e ajudar as colaboradoras.
Transformar a relação da empresa com a parentalidade passa por obrigatoriamente mexer na cultura corporativa?
Michelle: Na maioria dos casos, sim, é preciso passar pela cultura corporativa. Existem situações em que a cultura da empresa vem de uma base em que a parentalidade é naturalizada, em que os fundadores ou o time de gestão acreditam nisso. Quando não é esse o caso, precisamos trabalhar a cultura. Se não fizer isso, por mais que exista um benefício de licença-maternidade ou paternidade estendida, as pessoas não se sentirão à vontade para usufruir. Grande parte das empresas que atendemos na Filhos no Currículo apresentam essa queixa. Mas por que será que as pessoas não tiram essa licença? Será que elas não se sentem coibidas de alguma maneira a não usufruir desse benefício porque pega mal, por exemplo? Esse é um exemplo concreto de desalinhamento entre cultura e práticas. Então, a mudança precisa começar com a cultura.
De que forma a ideia de trabalhar essa parentalidade como potência ajuda as empresas olhando para os resultados do negócio?
Michelle: Falar de parentalidade nas empresas é um diferencial competitivo. Para além do impacto para a nossa sociedade, uma vez que estamos falando da formação das novas gerações, falar de parentalidade faz bem para o mercado de trabalho. Inclusive vai impactar diretamente na diminuição de rotatividade, no aumento de engajamento, na marca empregadora da organização e nas metas de equidade de gênero.
Poderia dar um exemplo?
Michelle: A Cielo [empresas de meios de pagamento] é uma parceria estratégica nossa há muito tempo. A partir de um programa conjunto de atividades parentais, ela conseguiu reduzir em 33% o turnover de mulheres voltando de licença e aumentar em 68% o engajamento do programa de parentalidade na organização. Ou seja, temos aqui um exemplo concreto de uma empresa que, ao olhar para a parentalidade, gerou mais valor para o negócio.
Jornalista e mãe do Martin. Além de colaborar com a Flash, é assessora de imprensa na área de música e escreve sobre cultura em veículos de imprensa.